Fake news, redes sociais e a reforma da Lei de Lavagem

O projeto de Lei das Fake News tramita pela casas do Congresso e ainda não virou Lei. Das várias versões dos substitutivos que circularam, uma trazia a inserção de medidas penais sobre a celeuma das Fake News.

Felizmente, a parte penal caiu. Ainda não houve o amadurecimento institucional necessário para compreendermos como, de fato, está estruturada a rede produção, propagação e remuneração de notícias falsas que podem ou não ter propósito econômico, político, religioso, etc.

A redação criminal sugerida era problemática justamente porque falta a definição legal de o que sejam fake news e de quais são os atores envolvidos (faz sentido caracterizá-los como organização criminosa? qual a modulação do embate entre mentira e liberdade de expressão? Como delimitar a responsabilidade individual de quem foi enganado, mas propagou fake news? etc.).

Sabemos, porém, que essa definição virá – e isso deve ocorrer em breve, tanto pelo ajuste legislativo quando judicial, em especial após os episódios que certamente presenciaremos nas próximas eleições (novembro de 2020).

Então, é preciso retomar uma intuição correta que havia nessa parte penal de uma das versões do projeto de Lei das Fake News: uma sugestão de alteração da Lei de Lavagem.

O momento parece propício para retomarmos o debate – acaba de ser anunciada uma comissão (muito competente, por sinal) para a reforma da Lei de Lavagem.

Certamente, o grupo de juristas deverá enfrentar alguns desafios.

A análise dos números do COAF revela que a longa lista de pessoas obrigadas do artigo 9º ainda não se tornou eficaz, sendo que muitos setores obrigados não foram regulados (esportes, eventos culturais, produtos de origem animal, produtos de origem vegetal, consultorias como a advocatícia, consultoria imobiliária, consultoria em operação societária, etc.) e outros que foram regulados apresentam normas insuficientes (o que é especialmente verdadeiro para o setor imobiliário e para as Juntas Comerciais), levando a um baixíssimo índice de comunicações.

Tudo isso poderá ser endereçado na reforma legislativa.

As modalidades do crime de lavagem, de que tanto falo neste Blog, também poderão ser melhor definidas, com agravantes e atenuantes específicas para cada variação, valorizando a importância dos já obrigatórios mecanismos de controle e prevenção à lavagem.

Mas podemos dar um passo além.

No escândalo do possível uso do Facebook por ativistas russos para influenciar as eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2016, falou-se bastante na presença de hackers russos.

O que ficou claro, com o escrutínio público do caso, foi que não havia a necessidade de hackear o Facebook para que os eleitores americanos fossem identificados de acordo com seu perfil, analisados e massivamente influenciados por meio de notícias falsas, teorias da conspiração e jogos virtuais que levavam dados pessoais de terceiro embora.

Para fazer isso tudo não era preciso hackear o sistema, era preciso pagar por ele.

No caso do Brasil, a investigação jornalística da rede de fake news por WhatsApp chegou a conclusões similares.

No lugar de hackers, uma complexa rede de financiamento empresarial que parece revelar um tipo novo de relação imoral entre o público e o privado.

Não se trata de um ato de corrupção no sentido clássico, mas de um verdadeiro investimento. Uma rede de empresários financia o uso de milhares de contas falsas e robôs no período eleitoral para propagar notícias falsas no WhatsApp a troco de… contato? acesso? facilidades?

Muitas vezes, candidatos políticos não são agentes públicos e isso também faz com que esse tipo de relação imoral não implique atos de corrupção (não no Brasil, mas isso estaria explicitamente coberto como um ato de corrupção pelo Foreign Corrupt Practices Act dos Estados Unidos, por exemplo). Essa estranha realidade nos força a também repensar o papel dos partidos políticos nessa rede, no combate à corrupção e na prevenção à lavagem.

Como o Supremo Tribunal Federal proibiu a realização de doações eleitorais por empresas, a operacionalização do custeio desse tipo de atividade eleitoral, o envolvimento das pessoas jurídicas nesse sentido é ilegal e ainda pode ser criminoso, nas modalidades de crimes contra a honra eleitorais (arts. 323 e seguintes do Código Eleitoral) e de falsidade ideológica do Código Penal (ou já de ocultação, recaindo em lavagem na sua concepção clássica).

Essa rede de pagamentos por serviços eleitorais ilícitos é uma rede de lavagem na medida em que remunera a realização de uma atividade prévia já qualificada como crime, bem como financia a própria “rede lavadora” (caso raro da possível aplicação da modalidade de lavagem por participação do grupo/escritório, do art. 1º, §2º, II).

Fake news não devem ser qualificadas como terrorismo, mas a rede que financia sua propagação parece ter semelhanças grandes com a rede de Financiamento do Terrorismo.

Nesse momento surge outra pergunta: deveriam as plataformas ser pessoas obrigadas?

A pergunta pode ser analisada por várias ópticas.

Em um primeiro momento esse questionamento pode gerar estranheza, pois a atividade aparente das plataformas (Google, Facebook, WhatsApp, Instagram, Pinterest, Twitter, Reddit, etc.) seria a comunicação.

Por outro lado, mudanças recentes no cenário de pagamentos – com a entrada do Google, por exemplo, e do WhatsApp Pay – mostram que ao menos uma parte dessas plataformas já deverá se enquadrar nos conceitos existentes de pessoas obrigadas por força de seus serviços acessórios.

E daí talvez surja a resposta, a partir de outro questionamento: por que plataformas sociais estão investindo em meios de pagamento?

Parece existir uma sinergia muito grande entre o modelo de negócios de propagandas por redes e a própria ideia de pagamento, especialmente quando as propagandas são direcionadas por algoritmos que especificam o alvo. Se a própria plataforma que gera a aproximação puder, também, lucrar na realização do pagamento, o negócio da internet será ainda maior do que já é.

Já que as plataformas digitais funcionam tão bem em aproximar oferta e demanda, faz sentido elas ansiarem por lucrar não apenas com a aproximação, mas com a própria transação que elas viabilizam.

As redes sociais já começaram a fazer KYC – quem ainda não percebeu isso, apenas não entendeu a proximidade que o assunto possui com o financiamento de atividades criminosas. O objetivo, em um primeiro momento, seria o de coibir redes de ódio, mas a medida implica, no fundo, a exclusão de uma série de relações “comerciais” de propaganda que estavam sendo possivelmente pagas por empresas lícitas, como transações típicas das plataformas.

Talvez digam que não faz sentido as redes sociais serem pessoas obrigadas como os bancos – é verdade. Mas isso se aplica a todas as demais pessoas obrigadas. O papel da Lei de Lavagem é tão somente o de delimitar a extensão da obrigação dos controles PLDFT a determinadas pessoas, em função de algumas atividades mais propensas ao risco de lavagem, e não o de regular as especificidades desses controles por setor (apesar de ela poder dizer quem regularia, o que faria um bem enorme aos setores que não possuem um regulador único, e que acabam ficando na mão do COAF ou de reguladores parciais, como o IPHAN e o COFECI).

Este texto não é, exatamente, uma proposta, mas uma provocação ao debate público e qualificado. Sobretudo, este texto não é uma crítica ou um ataque às plataformas digitais, pelo contrário: elas seriam as principais beneficiadas de uma regulação saudável do setor em crescimento.

PS.: este texto é tributário de debates que você pode assistir no documentário “The Social Dilemma” e, em especial, às ideias do mercado de futuros humanos, da professora de Harvard, Shoshana Zuboff.

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