Comentários Esparsos à Lei de Lavagem – 3. O proveito do crime e o paradigma da ocultação

Finalmente, retomo os comentários esparsos à Lei de Lavagem. Já falamos de alguns aspectos gerais e introdutórios no primeiro post, em que me dirigi à questão dos “paradigmas” de lavagem e da sua prevenção. No segundo, abordei outras modalidades de cometimento do crime.

Agora, gostaria de endereçar uma distinção relevante e que embala muitos debates práticos sobre a lavagem de dinheiro e sua aplicação aos diversos crimes antecedentes que podem ser caracterizados como “crimes empresariais” ou “econômicos”.

A distinção se dá entre os termos produto de crime e proveito de crime.

A primeira coisa que precisa ser dita é que os diversos tipos de lavagem existentes no artigo 1º da lei não fazem menção à expressão produto de crime.

A expressão aparece na Lei, é fato, em seu artigo 4º, por exemplo, que trata das medidas assecuratórias envolvendo “produto ou proveito” do crime de lavagem ou de seu antecedente.

Mas a discussão sobre o crime de lavagem em si nunca deveria ter sido uma discussão sobre o produto do crime.

Isso é relevante porque a doutrina e a jurisprudência penais têm uma longa tradição de delimitação do produto do crime. Não poderia ser diferente, visto que o próprio Código Penal trabalha com a dicotomia ao definir o perdimento do “produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso” (art. 91, II, b) como uma das consequências da condenação penal.

Como já destaquei anteriormente, a distinção também aparece, por exemplo, na redação do tipo penal da receptação, que restringe a prática do ilícito a produtos de crimes antecedentes (não abarcando proveitos).

Usualmente, é apresentada uma distinção entre produtos ou proveitos diretos e indiretos, tratando os termos produto e proveito como sinônimos.

Os produtos diretos (producta sceleris) seriam aqueles obtidos diretamente da atividade criminal. Assim, por exemplo, um estelionatário que convence alguém a lhe atribuir um título de mercado mediante fraude teria como ganho direito a obtenção desse título. Este seria o produto.

Digamos, agora, que este título corresponda a um índice de mercado que, após a ocorrência do crime, percebeu uma valoração. O ganho do valor do título pode ser caracterizado como um produto indireto (fructus sceleris).

A rigor, porém, ambos são proveitos do crime de estelionato. Assim, se o estelionatário vender o título a terceiro, já estará cometendo o crime de lavagem tanto em relação ao título em si quanto em relação ao ganho de capital auferido com sua valoração (não havendo, porém, dois crimes, sendo apenas um ato de lavagem). Agora, por certo, ele pode vender sem realizar um ato de ocultação, por isso é relevante conhecer as diversas modalidades de cometimento da lavagem de ativos além da descrita no caput do art. 1º da Lei de Lavagem.

Se é verdade que o dinheiro não tem cheiro (pecunia non olet), a possibilidade de inserir valores lavados com valores lícitos é um dos principais métodos para dificultar não apenas a investigação, mas o próprio perdimento (que precisa respeitar o direito à parte lícita do patrimônio a qual, muitas vezes, se mistura com e se torna indissociável da parte ilícita).

É por isso que o debate sobre produto e proveito precisa endereçar as condutas que de fato constituem um ato de lavagem e não a questão do perdimento.

Isso porque, no contexto da Lava Jato, houve um intenso debate sobre a natureza dos pagamentos de propina feitos a título de corrupção. Muitos desses pagamentos eram procedimentalizados de forma a tornar mais difícil sua identificação. O debate se concentrou no ponto de saber se essa procedimentalização (por exemplo, remessas ao exterior para offshores cuja propriedade ou administração era atribuída ao funcionário corrupto ou a terceiro a ele relacionado) já constituiria um ato de lavagem ou não.

A tese de defesa era a de que essas medidas seriam responsáveis por consumar o crime de corrupção passiva (que pode ocorrer pela solicitação ou pelo recebimento direto ou indireto da vantagem indevida) e não implicaria o crime de lavagem. A tese da acusação era a de que esse ato de ocultação autônomo implicava lavagem.

Presos no paradigma da ocultação, o debate parece prender a estrutura do crime de lavagem à ideia de que o delito somente ocorre quando há o intuito específico de “esconder” o valor da propina enquanto produto de um crime antecedente – produto este que ainda precisaria ser enquadrado como um direto ou indireto, algo que não fica claro.

Mas não resta dúvida de que o pagamento da propina em si provém de atividade criminosa (o acordo de corrupção – envolvendo tanto o crime da corrupção ativa quanto da passiva). Ao utilizar esse recurso na economia – em operações de câmbio, constituições societárias, etc. – o crime de lavagem já foi cometido (na modalidade do artigo 1º, §2º, I).

Essa á importância de compreender a distinção entre o “paradigma da ocultação” e o “paradigma da conversão“.

Se o tipo de lavagem é primariamente identificado com a inserção do recurso na atividade empresarial ou financeira, pouco importa se o pagamento da propina foi feito direta ou indiretamente (por interposta pessoa), pois nessa hipótese ao ser alocado por um canal empresarial ou financeiro, o crime de lavagem ocorre em concurso com o crime de corrupção. Por outro lado, é preciso reconhecer que a lavagem acontece, justamente, na conversão do proveito do crime em capital empresarial ou financeiro, de modo que o dinheiro utilizado para uma operação simples de consumo, por exemplo, não se enquadra nessa modalidade de lavagem.

É óbvio que, para isso, o Ministério Público será o principal responsável por ajustar a imputação para evitar o problema que de fato existe na intersecção entre o crime de corrupção passiva e a modalidade de lavagem-ocultação do art. 1º caput.

A consequência, ainda, é a descriminalização do uso dos proveitos do crime para fins de consumo, o que também nos parece absolutamente adequado como política pública inerente à proibição da lavagem.

Um comentário em “Comentários Esparsos à Lei de Lavagem – 3. O proveito do crime e o paradigma da ocultação”

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s