Comentários esparsos à Lei de Lavagem – 2. Outras modalidades de lavagem

No primeiro post, explorei a mudança do paradigma da ocultação para o paradigma da conversão como um ponto central para compreender o conceito de lavagem – um conceito que é inseparável da definição dada pela lógica do direito penal ao crime de lavagem de dinheiro (com todo o rigor necessário para se adequar à matéria criminal).

Entretanto, como vimos, o tipo de lavagem, na modalidade de conversão (utilização na atividade econômica ou financeira) é bem amplo e permite o enquadramento de condutas muito diversas.
 
Uma das formas de delimitar o conteúdo do tipo penal de lavagem, portanto, passa justamente pela etapa de compreender as outras modalidades de ocorrência desse crime.
 
Há pelo menos outras 3 modalidades: 1) a modalidade de “receptação”; 2) a modalidade Comex; 3) a modalidade de “engajamento” (esses nomes são heterodoxos e podem não corresponder à leitura tradicional da doutrina).
 
Conhecer essas modalidades é de especial importância para as pessoas obrigadas que atuam nos mercados financeiros, de capitais, de câmbio, de consultoria de comércio exterior e imobiliária.
 
Comércio Exterior, Importação e Exportação: Vantagens e ...
 
1) Lavagem na modalidade de Receptação
 
Existem muitas semelhanças entre o crime de lavagem e o crime de receptação, previsto no código penal, em seu artigo 180:
 
Receptação

        Art. 180 – Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte:            

        Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.”
 
E, na modalidade do artigo 1º, §1º, II, da Lei de Lavagem, temos a seguinte configuração:
 
§ 1o  Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal:                    
 
II – os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere;
 
A principal diferença, e isso se percebe com a leitura dos tipos penais, está no trecho sublinhado: no crime de lavagem, a movimentação do bem proveniente de infração penal se dá com o objetivo específico de ocultar ou dissimular sua utilização.
 
A construção, para dizer a verdade, não faz sentido – o que se quer ocultar ou dissimular, via de regra, não é o próprio bem, direito ou valor (que será reintegrado à economia formal), mas sim sua origem ilícita.
 
Outras diferenças também são: a receptação exige um crime antecedente, e não qualquer infração penal (contravenções estão excluídas); a lei de lavagem prevê a simples guarda como uma modalidade delitiva (na receptação, essa modalidade apenas estaria presente se a guarda se presta à ocultação). Por fim, a principal diferença: o crime de receptação se refere única e exclusivamente aos produtos de crime, enquanto que a lavagem fala de proveitos de crime (ainda irei explorar, em outro post, a extensão dessa diferença, mas, por hora, basta saber que o conceito de proveito é mais abrangente).
 
Em razão da semelhança, porém, chamo essa modalidade específica de lavagem de “lavagem na modalidade de receptação”.
 
Aqui, um ponto muito importante: em razão do objetivo específico de movimentar o bem, direito ou valor com o intuito de ocultar sua utilização (origem ilícita), trata-se de crime usualmente cometido pelo autor do crime antecedente (e pode ser visto como uma tipificação muito problemática da autolavagem, quando o autor do crime antecedente comete a lavagem em benefício próprio). 
 
Porém, para as pessoas obrigadas, é importante explicitar que se elas atuam com “aquisição, recebimento, troca, negociação, garantias, guarda” de bens, direitos e valores, passa a ser parte integrante de seu programa de compliance PLD a investigação do histórico dos bens, direitos e valores que ela adquire, recebe, troca, dá ou recebe em garantia ou guarda.
 
Esse é um dos aspectos mais ignorado por todas as pessoas obrigadas, e uma falha geral no ecossistema de compliance PLD.
 
Para empresas do setor imobiliário que disponibilizam seus imóveis para guarda, por exemplo, deveria fazer parte dos processos de diligência algum nível de cuidado com a origem dos bens guardados. Da mesma forma, isso cria para as instituições financeiras o dever de averiguar a origem lícita dos bens que são recebidos em garantia (como garantias reais, societárias, mas também em operações de alienação fiduciária ou outras modalidades que possam implicar transferência de propriedade ou a criação de algum direito ou proveito contábil sobre aquele bem).
 
2) Lavagem na modalidade Comex
 
Esta modalidade do crime de lavagem é um caso muito específico que nos lembra o complexo histórico da Operação Narciso, a qual implodiu o império Daslu. Para quem se lembra do caso, é possível enxergar uma semelhança entre o uso fraudulento de informações de importação e exportação e situações análogas como uma hipótese de lavagem.
 
O que o próprio histórico da operação Narciso mostra, porém, é que o enquadramento – e a prova – dessa modalidade podem ser muito mais complexos do que o enquadramento do crime tributário correspondente.
 
Isso porque, nessa modalidade, o crime recebe a seguinte descrição:
 

Pelo §2º, II, comete o crime de lavagem quem “Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal:“.

III – importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros.
 
Ou seja, quem comete esse crime declarando um valor a menor, obrigatoriamente estará também cometendo um crime tributário, porque, ao declarar o valor falso, repassa uma informação fraudulenta para o Fisco e reduz o imposto devido.
 
A explicação da ocorrência desse crime é complexa.
 
Nessa modalidade, para ocultar a utilização de proveitos de crime, uma pessoa exporta ou importa outros bens (de origem lícita) com valor distinto do verdadeiro, ou seja, informa um valor menor que o real, ou um valor maior que o real.
 
Isso gera quatro hipóteses distintas:
 
 
Importar à menor: ao importar à menor e revender pelo preço real, por exemplo, a pessoa gera um “bolsão” de valor. Essa diferença (auferida no país importador)  pode ser, justamente, o dinheiro lavado. Por exemplo, um produto é comprado por US$ 100,00 no exterior, mas, ao ser importado, o valor declarado do produto é de US$ 60,00. Essa diferença de US$ 40,00 pode ser “amortizada” pelo dinheiro obtido com outra atividade ilícita e a operação é contabilizada como sendo regular. Nessa modalidade, o ganho tributário sobre a comunicação falsa do valor é a chave central da questão e é esse ganho que costuma ser o montante lavado.  (Na Operação Narciso, aparentemente, houve essa modalidade de importação à menor, justamente, porque a diferença no imposto era muito alta, mas os responsáveis não foram processados por Lavagem, e “apenas” pelos crimes tributários e de falsidade. Nessa modalidade, costumam ser envolvidos produtos que são tributados com maiores alíquotas na entrada). 
 
Importar à maior: ao importar à maior, ocorre uma supervalorização do bem importado, sendo que, muitas vezes, o valor lavado é justamente esse sobrepreço. Ao importar o produto com preço superfaturado, o lavador considera que vale á pena inclusive pagar os impostos e custos decorrentes, sendo que o ganho contábil costuma ser observado no país exportador (nessa modalidade, têm preferência produtos com isenções tributárias ou sobre os quais incidem impostos com vantagens na importação e a lavagem tende a ocorrer no país em que a diferença contábil positiva é de fato auferida). 
 
Exportar à menor: exportar à menor não é necessariamente a contraparte de importar à maior. Entender isso é o primeiro ponto, pois os controles de exportação e de importação, nos países envolvidos na transação, via de regra, são independentes. Assim, é possível exportar à menor um produto que seja recebido pelo valor de mercado no país de destino. Para tanto, a papelada de importação não irá bater com a de exportação, “gerando” um crédito no meio do caminho (usualmente sendo auferida uma vantagem contábil no país importador, onde também tende a ocorrer a lavagem).
 
Exportar à maior: No ato da exportação à maior, o exportador aufere um ganho de capital, que é justamente o valor utilizado para a lavagem.
 
Como se pode perceber, em todas essas modalidades, a questão tributária é essencial, mas não apenas. As variações de câmbio (e a flutuação dos contratos derivativos feitos para resguardar os valores de câmbio, etc.) também são fatores que interferem na realização de operações fraudulentas, em que, muitas vezes, é difícil estabelecer uma ordem sequencial entre o ganho tributário ilícito e sua lavagem. Existe, também, uma multiplicação das modalidades a depender de haver ou não triangulação, ou seja, se existe identidade entre as partes importadora e exportadora ou não. 
 
O tema é tão complexo, que essa modalidade de lavagem, ainda que seja possivelmente muito utilizada, reflete muito pouco a jurisprudência e os esforços regulatórios PLD (mesmo na Operação Lava Jato, por exemplo, as mesas de importação e exportação de petróleo e derivados não fez tanto ruído como a rede de lavagem via depósitos em offshore).
 
3) Lavagem na modalidade Engajamento
 
Por fim, a modalidade de engajamento, que não é menos complexa.
 
Pelo §2º, II, comete o crime de lavagem quem “participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei.“.
 
Aqui, há duas leituras possíveis. Uma mais extensiva e uma mais restrita. Como vocês verão, de forma contraintuitiva, é a leitura restrita dessa modalidade de lavagem a que tem real potencial de estabelecer uma política pública PLDFT.
 
Na versão ampliada da compreensão desse tipo penal, participar é uma conduta que engloba todo e qualquer ato vinculado ao local onde se exerce uma atividade sabidamente relacionada à lavagem. Então, por exemplo, a faxineira que limpa o escritório de contabilidade que realiza a lavagem de dinheiro também comete o crime de lavagem de dinheiro, se ela souber a que se presta o escritório.
 
Percebam que a leitura não apenas soa injusta, como possibilita uma caça às bruxas pequenas.
 
Já em uma versão restritiva desse tipo, o termo “participação” é tomado ao pé da letra legal, e significa participação societária (ainda que de fato, mediante investimento, gestão, etc.).
 
Isso cria todo um canal de controle de investimentos que reforça o dever da realização de due diligence na aquisição de participações societárias por parte das pessoas obrigadas – um objetivo que, além de soar mais justo, parece ser mais adequado em termos de política pública PLDFT.
 
Aqui a ocorrência do crime se dá no momento em que a participação ocorre sem que o investidor tenha feito a due diligence PLD – mas percebam, neste caso, não basta apenas realizar a comunicação ao COAF para desconstituir os riscos de lavagem, pois “participar” não é uma transação simples e sim uma conduta permanente, que se prolonga no tempo enquanto durar o vínculo social.
Por isso, nesta modalidade, as pessoas obrigadas devem tomar cuidados adicionais para não ingressarem em negócios ilícitos, mas também estruturar seus contratos de compra e venda de ativos societários prevendo cláusulas de escape específicas para mitigar o risco dessa modalidade delitiva.
 
 
 
 

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